E o Rio moderniza-se
"A cidade está situada em um monte de boa vista para o mar, e dentro da barra tem uma baía que bem parece que a pintou o supremo pintor e arquiteto do mundo Deus nosso Senhor, e assim é coisa formosíssima e a mais aprazível que há em todo o Brasil [...]."
Fernão Cardim. Narrativa epistolar de uma viagem e missão jesuítica pela Bahia, Ilhéus, Porto Seguro, Pernambuco, Espírito Santo, Rio de Janeiro, S. Vicente, S. Paulo etc. [...] 1583-1590. p. 94-95.
"As ruelas que se multiplicam para os lados da Misericórdia: Cotovelo, Fidalga, Ferreiros, Música, Moura e Batalha, estreitas, com pouco mais de metro e meio de largura, são sulcos tenebrosos que cheiram mal. Cheiram a mofo, a pau de galinheiro, a sardinha frita e suor humano. O bairro é velho e miserável, remanescente de um casario que foi, entanto, o da melhor nobreza, pelos tempos dos Governadores Duarte Gouveia Vasques ou Salvador Pereira, aí pelo ano de mil seiscentos e tantos. Pífios sobradões expondo frontarias onde a cal branca dos rebocos mostra-se grisalha; paredes descascando roídas pela implacável lepra dos tempos, o pedregulho e o tijolame à mostra, telhados suando a lentura verde dos limos ou esbranquiçados, nos beirais, pelo brotar de cogumelos, telhas de canal partidas ou desbeiçadas. [...] Prédios que há quase um século não recebem uma só mão de tinta, um pequeno conserto na esquadria cumba e estalada pela idade, nos vidros partidos que se veem remendados por imundos pedaços de papel, nas sacadas, mostrando ferros retorcidos e corrimãos covos pela ação destruidora do cupim. Tudo isso anda a pedir, aos berros, picareta, fogo ou terremoto."
Luís Edmundo. O Rio de Janeiro do meu tempo. Brasília: Senado Federal, 2003. p. 83.
Em 1921, quando foi decretada a derrubada do velho morro do Castelo, e, em conjunto, a construção do espaço de uma grande exposição para comemorar o primeiro centenário da independência brasileira, muitos cariocas não acreditavam que uma obra de tão grande monta seria efetivamente levada a cabo. Os defensores do arrasamento, como se dizia à época, apoiavam-se em argumentos higienistas e sanitaristas para impulsionar o projeto de modernização da capital da República para o novo século XX, livre da imagem de cidade colonial, mestiça, estreita e suja.
À medida que a obra avançava, a oposição perdeu força e adeptos; no entanto continuou acusando a municipalidade de destruir um importante sítio histórico para a memória do Rio de Janeiro, cobrando os imensos gastos e dívidas feitos para arcar com um investimento público de tais proporções em termos de consumo de capital, mão de obra, tempo, técnicas e tecnologia. A despeito da discordância de literatos, políticos, cronistas e jornalistas que atacavam o governo de Carlos Sampaio, prevaleceu a vontade da elite, que deu um importante passo no esforço de transformação da urbe carioca em vitrine do progresso nacional e reflexo das grandes capitais europeias. Saíam de cena o "infecto e perigoso" bairro da Misericórdia e o "arraial" do Castelo, com suas construções decadentes e seus incômodos habitantes - pobres, negros, imigrantes - para dar lugar aos belos prédios (que, ironicamente, serviam para a consolidação de uma arquitetura nacional, chamada de neocolonial), às ruas e avenidas arborizadas, construídos sobre os novos terrenos obtidos a partir da velha terra do morro, ora aterro.
No ano do centenário, as obras caminhavam lentamente e estavam bastante atrasadas, tanto a derrubada do Castelo quanto o aterramento da baía, e, consequentemente, a construção de praticamente todos os pavilhões. Em meados daquele ano, muito pouco havia sido erguido. Os prédios iam sendo construídos conforme os aterros iam ficando prontos. Às vésperas do dia 7 de setembro, havia mais em obra do que pronto. A exposição foi finalizada quase em 1923, e recebeu expressiva visitação pela população, apesar de um pouco ofuscada por outros acontecimentos igualmente significativos naquele ano de 1922, como a Semana de Arte Moderna, que acontecera em fevereiro em São Paulo, e a Revolta dos 18 do Forte de Copacabana em julho. O fim do ano do centenário foi marcado por uma exposição inaugurada com muitas pendências, diversos pavilhões inacabados ou em construção, parte do Castelo ainda de pé, a prefeitura sem dinheiro e muito endividada, alguns milhares de desabrigados, que ficaram sem moradia e sem amparo das autoridades públicas. Em vez de assinalar um futuro de modernidade para o Rio de Janeiro conforme prometia, 1922 acabou por encerrar o idílio da Belle Époque carioca.