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O Rio do morro ao mar

O morro e a favela

Se o Castelo ruiu primeiro pressionado pela necessidade de modernização da cidade e como símbolo de atraso, o morro de Santo Antônio foi poupado por mais algumas décadas, não sem ter sofrido alterações e ter sido violentamente atacado pela imprensa e pelos literatos, que desde o início do século XX apontavam e denunciavam o crescimento desenfreado de uma grande favela nas encostas, sobretudo aquelas viradas para o lado do bairro da Lapa.

A ocupação do morro pelos "barracões", como então se chamavam as habitações populares, foi marcada por dois momentos distintos: em 1893 e 1898, soldados egressos da campanha de Canudos e os que lutaram na Revolta da Armada foram autorizados pelo governo federal a se instalarem no morro como solução provisória para o problema habitacional. Junto com eles, suas famílias e amigos, e uma grande parcela da população que vinha sendo desapropriada dos cortiços e de outros locais no centro da cidade, demolidos por razões sanitárias ou para a abertura das novas vias, subiam o morro em busca de moradia próxima ao trabalho. Em 1898, comissários de higiene já alertavam para a criação de um bairro novo, sem ordenamento, no coração da cidade, indicando que a solução provisória tornava-se definitiva para a maioria. João do Rio, famoso cronista e flanêur carioca, narrou em texto intitulado Os livres acampamentos da miséria, de 1920, uma incursão pelo morro, acompanhando um grupo de moradores que pretendia fazer uma seresta de madrugada:

"Eu tinha do morro de Santo Antônio a ideia de um lugar onde pobres operários se aglomeravam à espera de habitações [...]. Como se criou ali aquela curiosa vila de miséria indolente? O certo é que hoje há, talvez, mais de quinhentas casas e cerca de mil e quinhentas pessoas abrigadas lá por cima. [...] Todas são feitas sobre o chão, sem importar as depressões do terreno, com caixões de madeira, folhas de Flandres, taquaras. [...] Tinha-se, na treva luminosa da noite estrelada, a impressão lida da entrada do arraial de Canudos, ou a funambulesca ideia de um vasto galinheiro multiforme. Aquela gente era operária? Não. [...]" João do Rio. Os livres acampamentos da miséria. Vida vertiginosa. 1920. p. 144-148.

Na visão das elites cariocas, o morro de Santo Antônio era visto como um território quase selvagem, ocupado por vagabundos, feiticeiras, tocadores de viola, desempregados, bêbados, capoeiras - as classes perigosas -, removidos de suas habitações depois do bota-abaixo de Pereira Passos. Outras favelas, que desde essa época já vinham sendo identificadas com os morros, cresciam pela cidade e eram alvo das autoridades públicas, como a primeira delas, a Favella, no morro da Providência, que acabara por dar nome a todas. A partir dos anos 1920-1930, essas aglomerações, que aterrorizavam as "famílias de bem" da cidade, passaram a ser combatidas pelo poder público, consideradas espaços da pobreza, da desordem e do atraso que ainda pesavam sobre o Rio de Janeiro e contrastavam com o ideal de cidade moderna e civilizada que se perseguia. Eram outro mundo aos olhos da elite, uma cidade dentro da cidade.

Ao retornar de sua excursão pelos livres acampamentos da miséria, João do Rio conclui, dando voz ao pensamento que prevaleceu na decisão de por abaixo, anos depois, o morro de Santo Antônio:

"E quando de novo cheguei ao alto do morro, dando outra vez com os olhos na cidade, que embaixo dormia iluminada, imaginei chegar de uma longa viagem a um outro ponto da terra, de uma corrida pelo arraial da sordidez alegre, pelo horror inconsciente da miséria cantadeira, com a visão dos casinhotos e das caras daquele povo vigoroso, refestelado na indigência em vez de trabalhar, conseguindo bem no centro de uma grande cidade a construção inédita de um acampamento de indolência, livre de todas as leis." Ibidem, p. 152

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