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Na era das demolições - o morro de Santo Antônio

"Domina o largo da Carioca, à direita de quem vem das bandas da rua Uruguaiana, o Hospital da Ordem Terceira de S. Francisco da Penitência, um casarão velho, acaliçado e triste, mostrando janelas sempre abertas e por onde, não raro, espiam convalescentes em camisolas de dormir, o cabelo em desordem e faces brancacentas. A nota é melancólica, e impressionante. Vezes, apesar dos ruídos que provoca o movimento da praça, ouvem-se os berros ou lamentações dos que sofrem lá dentro, dos que se acabam e vão parar, depois, de pés juntos, no pequenino necrotério que fica quase junto ao chafariz, com sua cúpula muito branca e diante do qual, sinistramente, param os coches fúnebres, entram e saem grinaldas, coroas, ramos de flores e gente que soluça ou que chora, toda vestida de luto."

"[...] encontra-se, então, para o lado aquém da Imprensa Nacional, o chafariz, massa singela e augusta, a lembrar o feitio de um templo, com 29 bicas de bronze, sempre muito polidas e faiscantes ao sol. É para aí que um populacho, esmolambado e sujo, desce do morro de Santo Antônio, então povoadíssima favela e vem de outro morro, o do Castelo, pela famosa Chácara da Floresta."

"O quadro ofende, de qualquer forma o cenário da praça. Não raro, aos sábados, senhoras elegantíssimas, homens de sobrecasaca e de cartola, fazem mescla, com essa gentalha alvoroçada e suja. Contar, ainda, aumentando o labéu do vasto logradouro, com os imundos quiosques (nove ao todo!) que vendem café-caneca, cachaça e broas de milho, reunindo ranchos espetaculosos de bêbados e vagabundos em torno. Estão colocados próximo ao Bar do Necrotério, quatro e face à Leiteria Itatiaia, e mais dois bem próximos à rua de São José. E dizer que é, essa, uma parte do coração do Rio de Janeiro na aurora do século XX!"

Luís Edmundo. O Rio de Janeiro do meu tempo. Brasília: Senado Federal, 2003. p. 74, 82 e 83.

 

Parte do cenário apresentado pelo escritor Luís Edmundo já não existia nos anos 1920. Com a abertura da avenida Central em 1906 e as obras que atingiram o centro da cidade no governo do prefeito Pereira Passos, o largo da Carioca, bem como as ruas no entorno, não sairiam incólumes. Esta praça, que ainda conserva a antiga denominação de "largo", apesar de tantas transformações sofridas ao longo dos séculos, é até os dias de hoje um importante cruzamento para a cidade, centro de convergência de várias ruas, durante muito tempo ponto de partida de diversos meios de transporte e local de passagem para muitos cariocas em seu ir e vir diário.

O Hospital da Ordem Terceira da Penitência fora demolido para a ampliação da rua da Carioca; parte das velhas edificações foi substituída por outros prédios, condizentes com as feições da nova avenida que cortava o largo, que abrigavam magazines e lojas elegantes para a boa sociedade carioca; os quiosques, que tanto ofendiam o cronista, foram removidos, e junto com eles, os "bêbados e vagabundos", a pobre e incômoda população que descia os morros do Castelo e de Santo Antônio, circulava nos bares e no entorno do chafariz, e insistia em contradizer a descrição de cidade "civilizada" que políticos e imprensa aplicavam ao Rio de Janeiro. No alto, o convento resistia às tentativas de desapropriação e demolição, e continuava emoldurando a vista do velho largo da Carioca.

Desde as últimas décadas do século XIX, com os planos de melhoramento do centro da cidade propostos ainda durante o Império pelo então somente engenheiro Pereira Passos, falava-se em demolir os dois morros, Castelo e Santo Antônio, para melhoria da circulação do ar. Curiosamente, Passos, que seria o responsável por tantas e profundas mudanças no cenário da cidade no início da República, era contrário a essas medidas, defendendo a manutenção destas áreas e dos diversos prédios antigos sobre elas, que contavam muito da história da cidade e do Brasil. Pretendia sim, a abertura de vias para facilitar a circulação do ar e a urbanização dos morros, prevendo, inclusive, a planificação do alto do Santo Antônio e a construção de áreas de lazer, como parques e jardins.

Se nas décadas de 1900 e 1910 as intervenções nos morros não tinham sido muito drásticas - parte do Castelo fora cortada para abertura da avenida Central e construção de novos prédios e o topo do Santo Antônio tinha sido retificado -, os anos seguintes marcaram a vitória da proposta de derrubada de ambos. O Castelo foi o primeiro alvo da prefeitura, já em 1921. O morro de Santo Antônio resistiu um pouco mais. Para o aumento do largo da Carioca, o chafariz, que já não era mais usado como fonte de água para a população, foi demolido em 1925. A parte da frente da elevação, onde ficam o Convento de Santo Antônio e a Igreja da Ordem Terceira da Penitência, foi cortada, murada e uma escadaria passou a dar acesso aos prédios que por pouco também não sucumbiram. Concluídas as obras de melhoramento do largo da Carioca, os olhares da municipalidade se voltaram para o alto do monte.

Em fins da década de 1920, após uma série de conferências realizadas no Rio de Janeiro, o arquiteto e urbanista francês Alfred Agache elaborou um plano urbanístico para a cidade, por encomenda do prefeito Antônio Prado Júnior. Um dos pilares deste plano era o arrasamento do morro de Santo Antônio para a abertura de vias de ligação da cidade e a construção de um novo bairro voltado para o comércio sobre a futura esplanada. O Plano Agache só começou a ser posto em prática entre os anos 1930-1940, capitaneado pelo governo de Getúlio Vargas - tornou-se um símbolo do Estado Novo -, sendo que a derrubada só se iniciou, de fato, nos anos 1950, e não para o crescimento de um bairro comercial, mas para a abertura das avenidas Chile e República do Paraguai. A terra retirada, assim como a do Castelo, foi usada em mais um aterramento na baía da Guanabara, que veio a se tornar nos anos 1960 um parque, mais conhecido como Aterro do Flamengo, inaugurado quando o Rio de Janeiro já não era mais capital do país. O conjunto arquitetônico do convento escapou da derrubada graças ao tombamento em 1938, e hoje ainda dá uma vaga ideia do que foi, um dia, o morro de Santo Antônio, com o largo da Carioca aos seus pés.

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