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O Rio do morro ao mar

Na era das demolições - o morro do Castelo

"Semelhante às antigas e prestigiosas instituições que, arraigadas aos costumes dos povos e defendidas pelos interesses e pelas tradições de classes privilegiadas, resistem à força potente da civilização e do progresso, e à influência destruidora do tempo, e só pouco e pouco se vão desmoronando, agora pelo triunfo pacífico de novas ideias, logo pelo impulso violento de uma revolução política, o morro do Castelo, firmado em sua imensa base, tem até hoje zombado de não quantos projetos e planos de arrasamento com que o ameaçam desde muitos anos, e apenas vai sofrendo escavações parciais determinadas pela conveniência de alguns particulares que se utilizam do seu barro, ou cedendo ao ímpeto das tempestades e das águas, desmorona porções de sua terra com espanto e bem fundado susto dos habitantes da cidade."

Joaquim Manuel de Macedo. Um passeio pela cidade do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: B. L. Garnier, [18-?]. p. 228.

"Os morros de Santo Antônio e do Castelo, no coração da cidade, são dois arraiais de aflição e de miséria. No Rio de Janeiro, os que descem na escala da vida, vão morar para o alto, instalando-se na livre assomada das montanhas, pelos chãos elevados e distantes, de difícil acesso. Entre os dois Montes, é o Castelo, vizinho ao mar, o de maior relevo, o mais povoado e de aspecto melhor. [...] Até o governo do Sr. D. Fernando Portugal, penúltimo Vice-Rei do Brasil no Rio de Janeiro, a montanha do Castelo ainda guardava residências de ricos e de altos funcionários da Colônia. Um século depois, o morro, entretanto, é um descalabro. Do seu ilustre passado já nada mais existe, a não ser algumas construções espessas e sombrias, e a história de tempos que se foram."

Luís Edmundo. O Rio de Janeiro do meu tempo. Brasília: Senado Federal, 2003. p. 121-122.

 

Alguns dos mais famosos escritores e cronistas brasileiros dedicaram páginas de suas obras às transformações sofridas pelo Rio de Janeiro desde a implantação da República em fins dos oitocentos e ao morro do Castelo. Embora as penas de escritores como Machado de Assis, João do Rio e Luiz Edmundo, para citar apenas alguns dos mais célebres, o retratassem e descrevessem como uma mancha indesejada no centro da urbe, visão que já prevalecia mesmo antes das reformas "civilizadoras" das primeiras décadas dos novecentos, outros, como Joaquim Manuel de Macedo e Lima Barreto, se ocuparam em, se não defendê-lo, reconhecer sua importância histórica e sua tenaz resistência aos muitos projetos de demolição de que fora alvo, desde o período colonial.

A história do Castelo caminhava de mãos dadas com a da cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro. Em meados do século XVI, depois de vencidas as disputas com os franceses pelo controle do território e da povoação, Mem de Sá optou por transferir o núcleo central da tímida cidade para o alto do morro do Descanso, um local privilegiado para a defesa, de onde se tinha uma boa visão da baía, e também porque as áreas baixas do terreno entre as montanhas eram formadas de lagoas e brejos.

Até meados do século XVII, a cidade pouco ainda havia descido o morro, onde foi instalada uma fortaleza - o "Castelo", que acabou por dar-lhe o nome definitivo. Logo foram construídos o colégio e a igreja dos jesuítas; a primeira Sé, consagrada ao padroeiro da cidade, São Sebastião; a cadeia pública; a câmara municipal; além de moradias, onde viviam tanto as autoridades coloniais como boa parte da população. À medida que o núcleo urbano crescia, os charcos e pântanos foram sendo aterrados e secos, os rios desviados e canalizados, e a população começava a se mudar, fazendo a cidade crescer na parte mais baixa e plana. Lentamente, os prédios públicos acompanharam o movimento, e em meados do século XVIII, com a expulsão dos jesuítas do Império português, os prédios da Companhia de Jesus foram desativados e o morro do Castelo começava a perder a função de abrigar a administração da cidade, perder seus habitantes mais ilustres, passando a ser uma localidade periférica e se tornando mais esquecida.

A esta altura, ao passo que a cidade mudava de eixo, começavam a ganhar espaço os questionamentos acerca da utilidade da área do Castelo e cresciam as propostas para derrubá-lo, a princípio, em prol da melhoria da salubridade da capital: durante muito tempo insistiu-se na noção de que a presença do morro impedia a penetração dos ventos do mar e a circulação do ar na cidade, favorecendo a presença e proliferação dos "miasmas" causadores das febres e de outras doenças tropicais que assolavam a população, especialmente a mais pobre. Por trás desta justificativa, o que prevalecia era a necessidade de eliminar as marcas deixadas pela Companhia de Jesus, ao mesmo tempo em que aumentaria a área edificável e se aproveitaria a terra removida para terminar de aterrar as regiões que ainda eram alagadas. Essa justificativa de saúde pública também foi utilizada ao longo dos séculos XIX e XX, mas tanto o jovem Império quanto a República pretendiam com o arrasamento apagar as lembranças coloniais evocadas pela montanha. Na primeira década do século XX, o morro perdeu parte de sua encosta para a abertura do trecho final da moderna e novíssima avenida Central e para a construção de prédios como a Biblioteca Nacional e o Tribunal de Justiça (hoje Centro Cultural da Justiça Federal). Era o prenúncio do que ainda estava por vir.

Apesar de tantas campanhas, o morro foi resistindo. Do alto de seus 60 metros de altura, assistiu ao crescimento da cidade, a sua transformação em capital, primeiro da colônia, depois do império luso-brasileiro, e do Brasil independente em 1822. Viu a demolição do morro do Senado, as inúmeras ocupações e desocupações dos prédios históricos em seu topo. Por suas ladeiras subiram autoridades coloniais, desceram os moradores da cidade e subiram de volta os mais pobres na época do "bota-abaixo" promovido pela prefeitura durante as primeiras décadas do novo regime. Em seus últimos anos, servia de moradia para os muitos desfavorecidos e desabrigados que encontraram em suas velhas construções, habitações baratas próximas ao trabalho. Os raros momentos em que a cidade voltava seus olhos para ele eram durante as missas em honra do santo protetor, quando a população subia seus caminhos íngremes em procissão e lotava a praça e a Igreja de São Sebastião, e também quando as senhoras da boa sociedade carioca furtivamente percorriam suas vielas em busca das famosas videntes e cartomantes que prometiam saber o futuro, mas não impediram o que viria a acontecer anos mais tarde, na década de 1920.

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