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O Rio do morro ao mar

De cidade colonial a capital civilizada

"Se o aspecto geral da cidade ainda guarda o cunho desolador dos velhos tempos do rei, dos vice-reis e dos governadores, a multidão, contudo, é já bem outra. [...] O Rio de Janeiro do começo do século, com menos de 600 mil habitantes, já não lembra mais, em 1901, a ‘Cafraria lusitana' dos primeiros decênios da centúria anterior. [...] Nós, porém, vivemos satisfeitos, acreditando que habitamos a mais branca, a mais linda e a mais adiantada das metrópoles do mundo [...]."

Luís Edmundo. O Rio de Janeiro do meu tempo. Brasília: Senado Federal, 2003. p. 25-26.

 

Há quase cem anos, o Rio de Janeiro vivia um momento de euforia. Às vésperas do centenário da Independência, a cidade preparava-se para uma grande celebração da modernidade, da República e do progresso, apesar da constatação do cronista Luís Edmundo, de que se vivia, de fato, uma ilusão de civilização. Os cem anos da Independência do Brasil seriam comemorados em uma grande exposição internacional, que pretendia exibir ao mundo civilizado o estágio de desenvolvimento atingido pela jovem nação brasileira, em sua renovada capital.

Ao longo dos oitocentos, o Brasil, único império das Américas, participou de algumas exposições universais, procurando demonstrar seu lugar no conjunto das nações ilustradas do mundo, construindo a imagem interna e externa de um Estado-nação monárquico, forte e coeso. Já no período republicano, era preciso construir um novo Brasil. Apagar as marcas do atraso, associadas à escravidão, à monarquia e ao passado colonial e, em pouco tempo, modernizar o país. A capital serviria, em uma imagem já bastante explorada, mas ainda eficaz, de vitrine da nação, porta de entrada para os estrangeiros que viriam "fazer o Brasil" - e clarear a população mestiça - e para os capitais e investimentos que financiariam o nosso progresso. O Rio de Janeiro, mais uma vez, precisava com urgência civilizar-se.

No olhar daquela época, para atingir um estágio avançado de desenvolvimento era necessário eliminar as marcas da barbárie. Apagar do chão os traços da velha cidade colonial e da monarquia. Botar abaixo seus prédios, igrejas, chafarizes, cortiços, as feiras livres, os velhos hábitos e costumes de uma cidade negra, estreita e pobre. Tirar do centro da urbe os miseráveis, os mestiços, as velhas profissões, os quiosques, os tílburis, símbolos de um tempo ido que se pretendia esquecer.

Nas primeiras duas décadas do novo século, começam a surgir os boulevares arborizados, as avenidas largas e calçadas, os prédios em novos estilos arquitetônicos que seguiam a moda parisiense, espelho e inspiração para as reformas urbanas. As velhas construções coloniais, bem como os pobres habitantes da cidade - portugueses, mestiços capoeiras, lavadeiras, feirantes, vendedores ambulantes, menores abandonados -, tinham de ceder espaço para o novo tempo, sendo derrubados ou empurrados para fora da cidade ou para os morros.

A antiga cidade, tão familiar até hoje pela pena dos viajantes estrangeiros que a visitavam e não se cansavam de descrever e desenhar suas paisagens, seus tipos, seus hábitos e costumes, deveria ceder lugar à outra, registrada fartamente pela fotografia, técnica que se revestia então da falsa pretensão de retratar o real, "a verdade" do que se via. O local que sofreria este processo de ressignificação da memória física do Rio de Janeiro foi o morro do Castelo, arrasado para dar passagem ao progresso, apagado da paisagem para desaparecer da memória da cidade.

Se nos dias atuais o Rio de Janeiro ainda vive sob o signo de cidade partida, dividida entre o morro e o asfalto, entre o moderno e o antigo, entre progresso e atraso, essa tradição vem de longa data, difícil de precisar. Desde que alçada à posição de capital do Estado do Brasil em 1763, capital do Império português em 1808 e depois do Império do Brasil em 1822, o Rio de Janeiro, capital da República em 1889, carregava o fardo de representar o futuro do país, sem saber muito bem como lidar com seu passado. Marcada pelas grandes intervenções em seu espaço físico e natural, que chegaram a mudar-lhe definitivamente as feições, a cidade foi alvo em vinte e poucos anos de um volume enorme de transformações, mas as mudanças físicas não operaram resultados tão rápidos e enérgicos na mentalidade e nos hábitos dos moradores da cidade. Apesar do esforço para civilizar-se, o Rio de Janeiro ainda continuava uma cidade de traço colonial.

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