Cerâmica do Tapajós: uma coleção
Em torno dos séculos XVIII e XIX, um grande desenvolvimento populacional e cultural ocorrido na Amazônia, com extensas áreas de terras pretas, abundância de cultura material e mudanças significativas na paisagem, pode, em grande medida, ser explicado por meio da produção de artefatos, em especial peças de cerâmica, estudadas desde o final do século XIX.
A cerâmica arqueológica de Santarém remete aos índios Tapajó, que, provavelmente, haviam atingido um excedente de produção, o que permitiu o aparecimento de especialização do trabalho, necessária para a execução de peças do nível das presentes nesta coleção. Os variados tipos de vasos indicam um nível de desenvolvimento social que aponta para a presença de especialistas e de atividades diferenciadas.
Compreender as tecnologias cerâmicas das populações no passado é um dos objetivos da pesquisa arqueológica. Trata-se de tentar reconstituir o ciclo de produção dos objetos cerâmicos, desde a seleção e o preparo da matéria-prima, o processo de manufatura, as técnicas de queima e a elaboração dos acabamentos de superfície, além de definir seus usos e reusos, as estratégias de armazenagem e as formas de distribuição dos artefatos, e, finalmente, explicar as razões para o seu descarte. Ao resgatar as cadeias operatórias de produção e uso dos objetos cerâmicos, os arqueólogos buscam apreender os estilos técnicos dessas populações, ou seja, as escolhas culturais que definiram o modo como os objetos cerâmicos foram produzidos e/ou utilizados. A partir disso, tentam identificar e entender os processos de construção e transformação das identidades dos povos ceramistas no passado.
Um dos resultados dessas pesquisas foi o estabelecimento de uma relação entre a variedade formal dos conjuntos cerâmicos arqueológicos e a diversidade das populações ceramistas no passado amazônico.
A cerâmica de Santarém é, geralmente, representada por três utensílios diagnósticos, que são os vasos de gargalo, vasos de cariátides e vasos globulares antropomorfos e zoomorfos. Essas características existentes na cerâmica de Santarém evidenciam a relação intrínseca entre os grupos humanos habitantes da região e a natureza, e isso perpassa o tempo e denuncia a maneira como se constituem as redes sociais que foram sendo forjadas geração após geração.
No que diz respeito à decoração da cerâmica tapajônica, são identificadas, principalmente, representações antropomorfas e zoomorfas. Na região de terras pretas que abrange Santarém e Alter do Chão, no Pará, foram encontradas imagens da diversa fauna que habita esse ambiente, como onças, urubus-rei, gaviões, papagaios, patos, tucanos, cobras, jacarés, lagartos, sapos, dentre outros, que tem moldada, por vezes, somente a cabeça ou o corpo inteiro.
As figuras antropo-zoomorfas presentes nos vasos cerâmicos tapajônicos são compreendidas como a materialização da ideia de metamorfose corpórea, assim como o urubu-rei que se transforma em homem, os seres híbridos, os animais de presa e os grandes predadores, além de criaturas míticas como o urubu-rei de duas cabeças. Diversas classes de vasos integram o repertório desta parafernália xamânica. Dentre eles, os vasos globulares com pintura vermelha, utilizados provavelmente para armazenamento de bebidas, enfatizam as representações de caráter transformacional, retratando tanto animais de presa, como seres meio homem meio gente, alguns em plena transformação. Pratos, cuias e tigelas constituem categorias de artefatos destinados ao consumo de alimentos sólidos. Alguns autores consideram a predominância de animais ferozes como as onças, os jacarés, as serpentes e as aves de rapina, como uma metáfora para simbolizar o caráter guerreiro e expansionista dos Tapajó.
O conjunto cerâmico Santarém apresenta aspectos formais que denotam continuidade, evolução e inovações que foram incorporadas, compondo uma indústria pré-contato de alta sofisticação, que era desejada e levada para outras áreas via redes de troca. Como parte da dinâmica da manufatura cerâmica, processos de invenção, interação, empréstimos e reinvenções precisam ser considerados para as terras baixas e para a região do baixo curso do rio Amazonas, sendo a região de Santarém uma provável área de convergência cultural em períodos pretéritos.