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Cronistas e viajantes

A América é uma terra vasta onde vivem muitas tribos de homens selvagens com diversas línguas diferentes. Também há muitos animais bizarros. Essa terra tem uma aparência amistosa, visto que as árvores ficam verdes por todo o ano, mas os tipos de madeira que existem lá não são comparáveis com os nossos. Todos os homens andam nus, pois naquela parte da terra situada entre os trópicos nunca faz tanto frio quanto, entre nós, no dia de São Miguel (...). Por causa do sol forte, os habitantes da terra têm uma cor de pele marrom-avermelhada. Trata-se de um povo orgulhoso, muito astuto e sempre pronto a perseguir e devorar seus inimigos. A América estende-se por algumas centenas de milhas, tanto ao sul quanto ao norte. Já velejei 500 milhas ao longo da costa e estive em muitos lugares, numa parte daquela terra. (Hans Staden, A verdadeira história dos selvagens, nus e ferozes devoradores de homens - 1548-1555)

A descoberta do Novo Mundo emprestaria um sentido radicalmente novo aos bárbaros, estranhos à civilização e à língua gregas. A geografia das navegações transpõe os bárbaros para a figura dos selvagens, associados à empresa de conquista e dominação europeia. Antropófago, incapaz, de costumes cruéis, os indígenas estavam fadados à sujeição pelo colonizador. Visões mais ou menos impregnadas pela sobrevivência de clássicos como Ptolomeu e leituras renovadas sobre os perigos da navegação ou o descobrimento de terras transoceânicas levaram a uma série de relatos e a uma produção iconográfica algo fantástica quer do meio natural, quer dos habitantes da América.

Simultaneamente, as descobertas dão lugar a uma verdadeira fúria de conhecimento sobre os indígenas, em todos os seus aspectos – habitação, costumes, língua, meios de subsistência, entre outros – e ensejam, sobretudo, uma reflexão que igualmente se refere aos próprios europeus, em contraponto às sociedades com que se defrontam. Nem sempre os indígenas foram vistos de modo ultrajante ou como merecedores da política metropolitana. A violência da colonização foi criticada desde o século XVI, sendo exemplares a obra de Bartolomeu de Las Casas sobre os exploradores espanhóis, assim como os escritos de Michel de Montaigne, cujos ensaios revertem a relação tradicional entre civilizados e bárbaros, afirmando que os europeus ultrapassavam os indígenas em “toda espécie de barbárie”.

No século XVIII, esses textos são continuamente divulgados. Construía-se, portanto, a imagem dos habitantes livres e racionais que contrastavam com os conquistadores europeus, em clara alusão às sociedades do Antigo Regime, hierarquizadas, marcadas pela censura, pela opressão religiosa, a extorsão econômica de uma nobreza parasitária. A revalorização das sociedades ditas selvagens no século XVIII leva ao uso de novas expressões: indígenas e habitantes, nativos nas colônias de língua inglesa, e mesmo o termo “nações”, reconhecendo complexidade e organização naquelas culturas. Mas até entre aqueles que postulavam os princípios de igualdade e liberdade, fundados no programa filosófico e antropológico dos setecentos, estava implícita a submissão do bom selvagem à pedagogia ilustrada. A tradição iluminista conhece no século XIX a ambivalência romântica que introduz o “selvagem” em narrativas épicas e tramas romanescas ou em um discurso científico que o destitui da cultura.

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