Ir direto para menu de acessibilidade.
Início do conteúdo da página

A cidade toma a várzea

O Morro do Castelo logo tornou-se pequeno diante do aumento da população, e a primeira região que recebeu a cidade que crescia foi a várzea a seus pés e diante do mar, a região que hoje conhecemos por Praça XV. Em nada se assemelhava ao atual logradouro, sendo ocupada por uma praia conhecida por Praia do Peixe e pelo Largo do Carmo. Tornado centro comercial já em 1636, quando a Câmara delimitou a área como praça de mercado, o largo passou a receber não apenas mercadores de peixe, mas vendedores de frutas e hortaliças, e escravos que desembarcavam no atracadouro conhecido por Cais dos Mineiros.

A partir daí, a população venceu brejos, pântanos, florestas, lagoas e espalhou suas casas pela parte baixa da região em que hoje se encontra o centro do Rio de Janeiro. Velhas trilhas tornaram-se ruas, ergueram-se casas, sobrados, trapiches, abriram-se vias que ligavam os vários morros que dominavam o panorama da cidade. O mercado, localizado no Largo do Paço, foi transferido, assim como o porto que recebia os cativos chegados da África, em uma tentativa de afastar o terrível espetáculo do comércio de pessoas dos olhos das elites que tendiam a se instalar na região próxima ao Paço.

Nascida de um decreto real, a cidade pouco a pouco ganhou existência de fato, transformando a natureza selvagem de forma a aceitar seus novos ocupantes. Essa radical alteração da paisagem natural deu lugar às drásticas intervenções do poder público na organização do espaço urbano, movimento que encontrou expressão maior na abertura de duas grandes vias que marcaram a vida dos cariocas na primeira metade do século XX: a Avenida Central (atual Rio Branco), inaugurada em 1906, e a Avenida Presidente Vargas, inaugurada em 1944. Obviamente, as reformas foram muito além da abertura das novas vias, não só por estas terem exigido a derrubada de mais de mil prédios, a expulsão de um sem-número de famílias e o apagamento de marcos históricos com os quais o "carioca" desenvolvera profunda ligação afetiva (igrejas, prédios públicos, parques), mas também porque trouxeram consigo uma nova forma de ocupar a cidade, de se locomover por ela, de vivenciá-la.

Da elegante Rua do Ouvidor à boêmia Lapa, passando pelo ponto de encontro que se tornou a Cinelândia com seus cinemas, as antigas várzeas que se espraiavam entre os morros tornaram-se a cidade propriamente dita, em um movimento que acompanhou a destruição dos mesmos. Da insalubridade que marcava as velhas ruas coloniais do centro da cidade à ostentação reinante na Avenida Central, o centro do Rio passou a ser a vitrine da nova e orgulhosa República. No entanto, a partir de meados do século XX, a região sofreria um paulatino processo de esvaziamento que a transformou em lugar de passagem e centro comercial, deixando poucos espaços residenciais e raríssimos núcleos de entretenimento. Esse processo vem sendo revertido nas últimas duas décadas, com projetos de revitalização de áreas como a Lapa, o porto e a Praça Tiradentes, trazendo o carioca mais uma vez para o centro da cidade.

Além do sentido de valorização do capital fundiário urbano e da facilicitação da circulação de bens e mão de obra, as reformas tinham um cunho estético e político. Como capital do Império, e depois da República, o Rio de Janeiro representava diante do mundo uma jovem e pujante nação, em busca de investimentos externos e do seu lugar e papel no cenário internacional. Ao longo do século XX, à medida que a "cidade alta" vinha abaixo, a "cidade baixa" - ou o que dela restou - subia com os novos arranha-céus, incansavelmente repaginada de acordo com a lógica e as necessidades econômicas predominantes em cada época.  

Fim do conteúdo da página