Ir direto para menu de acessibilidade.
Início do conteúdo da página

Apresentação

ÁGUAS DO MESMO LAGO 

Abriu o baú. Entre papéis e fotografias, identificou cenas de teatro e cinema, rostos conhecidos da televisão, momentos em família, manuscritos de livros, roteiros de teatro e novela, cartas, poemas, canções e até prontuários policiais. Tudo contaria um pouco da história de um homem só. Mas o homem nunca aparecia sozinho nas fotografias, nem seu nome figurava solitário nos documentos. Acompanhavam-no outros rostos, outros nomes, siglas e carimbos de vários tempos. Confundiam-se as vidas, entrelaçavam-se os roteiros, e a história a ser contada extrapolava os limites do indivíduo.

Através dos documentos, podia-se acompanhar os rumos da dramaturgia brasileira, desde os tempos do teatro de revista, na década de 1930. Revivia-se também os anos áureos do rádio quando os ouvintes aguardavam ansiosamente as radionovelas. Com a mesma expectativa, os telespectadores do futuro esperariam o capítulo seguinte da telenovela diária. Entre os papéis, havia ainda conhecidas letras de músicas que embalaram muitas gerações de foliões.

Mas se o acervo era repleto de registros da cultura e das artes brasileiras no século XX, também nos recordava momentos duros da história política do país. O artista cuja vida confundia-se com a de nosso teatro, de nossa música, de nosso rádio era também um eterno insatisfeito com a realidade. Passou noventa anos brigando pela mudança que sonhava ver no mundo. As posições políticas lhe custaram algumas demissões e tantas outras prisões.

Era preciso organizar o baú. As categorias eram necessárias, embora arriscadas. O pai de família, o militante político, o ator e autor de teatro, o radialista, o artista de televisão e cinema, o compositor, o escritor: múltiplas facetas de um mesmo homem. Mas estariam divididas nele como gavetas em um armário?

O autor de teatro de revista, dos anos 1930, adepto da sátira política, e décadas mais tarde, já no governo militar, censurado pela peça Foru Quatro Tiradentes, não era parte também do Mário militante?

O marido de Zeli não era ainda o poeta que lhe dedicou versos pela vida afora? A esposa e mãe dos filhos, além de musa inspiradora, não fora também a companheira que conheceu em um comício em 1948?

Não fora a popularidade do Mário compositor que ajudara o Mário militante em várias de suas prisões?

Quanto do ator de teatro havia no radialista? O filho do maestro Lago e pai de Mariozinho não foi o compositor de mais de uma centena de músicas incluindo parcerias com ambos? Junto ao ator do filme São Bernardo que em viagem encanta-se com a figura do trovador Chico Nunes não estava também o escritor preocupado em registrar a cultura oral em vias de se perder?

As "gavetas" foram arrumadas buscando facilitar a compreensão de quem chega desavisado. Afinal, é quase um século de vida bem vivida. Estão abertas esperando serem bagunçadas.

Mariana Lambert Passos Rocha
Curadora

Fim do conteúdo da página